29.11.04

a velha cisterna


Georges Braque, Paysage


Cansada do caminho. Mas não sei que caminho.
Entrevejo veredas, todas diferentes mas tão iguais. Percorridas vezes sem fim, sem as tocar, sem sentir o pó que os passos levantam.

A casa, finalmente, a casa! Quase a esquecera. Demorada sobre a paisagem, em jeito lânguido, absorvendo gosto de maresia.
O traçado original manteve-se na distribuição dos volumes, duas alas separadas por portadas fortes de madeira, lisa, castanho ouro.
O que mudou foi a perspectiva. Paredes lisas, rasgadas por transparências, espreitando o olhar de quem passa. Murou-se o jardim, percorrido por enormes palmeiras, ar exótico disfarçado por carreiros de saibro dispostos ao acaso de quem mede cuidadosamente as pedras.
Sorrio ao descobrir a velha cisterna. O proprietário actual resguardou-a, vá-se lá saber porquê. Talvez a pense como o espírito do lugar, âmago de uma vivência passada.

Tantas vezes percorridas, as veredas. A elas regresso quando já não sei o caminho.
Partirei na próxima semana.

28.11.04

sintonias



Definições.
Estremeço na distância da noite.
Em suspenso, os nossos corpos.

25.11.04

quem disse que a um amigo não se oferece flores?


lotus

Kati.
Tal e qual assim. Pequenino, também. E grande como um sorriso cheio de sol.
Gosto de nomes pequenos. São meigos, doces, saboream-se. Derretem-se em ternura.
Está estabelecido, para ti, será Kati!

Fiquei feliz, pelas palavras, pelo gesto amigo de me trazeres a tua voz. Rompeste o silêncio em que me fecho durante o dia, fazendo dos momentos solitários o riso que todos me conhecem. Sacudindo com meiguice quem tenta pisar o meu espaço.
Mas tu entraste. E deixei que desenhasses o carinho nas paredes onde me resguardo ciosamente, deixei que colorisses as sombras do olhar, este meu jeito de olhar.
E fiquei sorrindo na doçura do teu gesto. Meu amigo.

E será Kati, escolha tua.

24.11.04

caminhada


Damos as mãos e vamos caminhando, desiguais nos nossos passos. Desacerto concertado, em assimetria desenhada de sentires.

A brisa, e não há brisa, roça leve em movimento descontínuo. No silêncio da água, a imagem, e não há imagem, de nós dois, estremece, dilui-se em círculos.

O percurso se faz plano, livre de escolhos. E deslizamos, sem sabermos que ao longe, e é tão perto, o caminho se precipita, desistindo de seguir.

Damos as mãos, regressamos de nós mesmos.
E continuamos sentados.

23.11.04

olhares



Virás circunscrita em tons outonais, com o perfume de gestos suaves em que assinaremos o nosso entendimento.


No lado contrário da mesa olho-te, vejo-te evoluir em gestos de palavras, ouço-te com a atenção perturbada de outros gestos em esperança guardados na pele.
Neste espaço onde os meus olhos encontram, procuram mas não com ânsia. Apenas tacteando a cor que se esconde por detrás das tuas palavras. Olhar titubeante, não a medo, mas retendo ainda o lastro de uma certa contenção.

Em flashes súbitos, os nossos olhos encontram-se, entendem-se, cúmplices, desviados embora de um caminho que se intersecta.
Espreitamo-nos e recolhemos o fulgor no encontro do outro olhar. Não nos abandonámos ainda.
E aguardamos

21.11.04

tell me lies, sweet little lies


Greg Gorman, Joan Severance

El arte es una mentira que nos acerca a la verdad.
Pablo Picasso

Nada é verdade ou mentira, tudo depende da óptica do olhar.
W. Shakespeare




Segurou o olhar. Guardou a informação. Rodeou-se de silêncio.
Respirou fundo e pensou serenamente, já sem emoção, apenas preenchendo o vazio que se lhe instalara na alma:

O que me preocupa não é que me tenhas mentido, é que de agora em diante já não conseguirei acreditar em ti
Nietzsche

20.11.04

porquê as estrelas?...

V. Van Gogh, Starry Night

I know nothing
with any certainty
but the sight of stars
makes me dream

V. Van Gogh, Old Mill

Jacques Brel, 1968
tiré de l'Homme de la Mancha


Rêver un impossible rêve
Porter le chagrin des départs
Brûler, d'une possible fièvre
Partir, où personne ne part
Aimer jusqu'à la déchirure
Aimer, même trop, même mal
Tenter, sans force et sans armure
D'atteindre l'inaccessible étoile
Telle est ma quête
Suivre l'étoile

Peu m'importent mes chances
Peu m'importe le temps
Ou ma désespérance
Et puis lutter toujours
Sans questions ni repos
Se damner
Pour l'or d'un mot d'amour
Je ne sais si je serai ce héros
Mais mon coeur serait tranquille
Et les villes s'éclabousseraient de bleu
Parce qu'un malheureux
Brûle encore, bien qu'ayant tout brûlé
Brûle encore, même trop, même mal
Pour atteindre à s'en écarteler
Pour atteindre l'inaccesible étoile

19.11.04

porque hoje...




Este difícil mês de Novembro.
Cor baça, enevoada, embora o sol tenha rompido a gaze lançada sobre as imagens.

Lembro outros. Mas não me lembro se eram enevoados. Eram apenas presentes, mesmo quando as palavras não se encontravam, as minhas e as tuas, na difícil comunicação que sempre mantinhamos. Era antigo o nosso desacordo, vinha de longe, misturava a necessidade de violentar o afecto, teimosamente sofrido, que nos ligava mais do que as feridas que o meu crescimento ia acumulando.

Invariavelmente repetias, é um dia igual aos outros, mas não era e tu sentias. Escondias a tristeza se o Zé, por distracção corrigida ao fim do dia, não se apressava a telefonar. E irritavas-te com a mãe se ela o referia. Era sempre o tempo, a falta de tempo, não percebes? Mas o sorriso desenhava-se quando o telefone tocava.

Aparecia-te manhã cedo, com um beijo embrulhado, escondido atrás de palavras rápidas com receio que se colassem ao hábito, mas recolhidas por ti com a intensidade do teu amor paternal. E acordávamos nessa paz, nesse dia. Como se os outros se sentissem perturbados pelas tréguas. E depois, lá voltávamos aquela luta de afectos tão cuidadosamente mantida.

Não levei flores para enfeitar a tua ausência. Não é preciso. O que guardo dentro de mim foi por ti estruturado ao longo dos anos.

Neste difícil e enevoado mês de Novembro.
Porque hoje farias anos.

18.11.04

dualidade


Frederick Leighton, Persephone )

Loving you isn’t the right thing to do
How can I ever change things that I feel
If I could, maybe I’d give you my world
How can I, when you won’t take it from me

You can go your own way, go your own way
You can call it another lonely day
You can go your own way, go your own way

Tell me why everything turned around
Packing up shacking up is all you wanna do
If I could, baby, I’d give you my world
Open up, everything’s waiting for you

You can go your own way, go your own way
You can call it another lonely day
…Another lonely day
You can go your own way, go your own way
You can call it another lonely day
You can go your own way


(Fleetwood Mac/ Wilson Phillips)


Perséfone ama Hades, comeu a romã, pertence ao mundo subterrâneo, das trevas.
Deméter sofre a sua perda cobrindo a terra do frio Inverno. Mas, Zeus, sensível às suas lágrimas, envia Perséfone para que tudo renasça.
Então, Perséfone volta sempre na Primavera para que os campos floresçam de novo.
Mas metade do seu coração fica com o amado, ao qual regressa para que o ciclo se cumpra.
Alegria e Tristeza, dualidade.

17.11.04

acordes



Hoje encontrei o Paulo. Virando a esquina dei de caras com os seus olhos grandes, doces, hesitando entre coser-se com as paredes e anunciar um olá de sorriso envergonhado.

Vertiginosa, a memória recuperou momentos esquecidos. De um grupo de amigos que decidira aprender as harmonias da dança, o Paulo representava o silêncio das pautas, escondido na contracapa dos passos executados até à exaustão. Partilhava o esvoaçar das valsas, a alegria do jive e a sensualidade do tango com o par que lhe fora atribuído, a Dolores. Cheia de uma vivacidade esfusiante, era o contraponto da insegurança, do trocar constante de ritmos e coreografias do Paulo.

As brincadeiras da dança, cumpriam um objectivo final, as competições entre as várias classes. E era um afã de cores, de escolha divertida de tecidos e fatos apropriados a cada dança. Mas havia a parte séria, conseguir decorar e executar na perfeição, as coreografias ensinadas pelos professores. E aí, não havia escolha, ou nos empenhavamos ou eramos excluídos. Mas tínhamos brio, e as noites prolongavam-se até os passos sairem correctos e o cansaço adormecer os corpos.

Dolores e Paulo dançavam o paso doble. E ele, a cada volta, parava, desistia. Ela, pegava-lhe na mão e, pacientemente, recomeçava. E assim até à noite da competição. Pouco antes de se ouvirem os acordes da dança, todos os pares já nos lugares que lhes tinham sido determinados, o Paulo, braços caídos, abana a cabeça e diz, não sou capaz, vou enganar-me. Dolores, linda e vistosa no colorido dos folhos e na flor vermelha refulgindo no cabelo louro, sacudiu-lhe os braços em fúria. Disse-lhe, vais dançar comigo e se te enganas apanhas um par de estalos no meio do salão. Silencioso, tímido no rodopiar, Paulo seguiu, todavia, o evoluir de Dolores. Não se enganou.

Depois de um breve instante, o sorriso surgiu, aberto, no rosto do Paulo. E o abraço que faltava acompanhou a memória desses dias de divertimento. No ar, conseguimos ouvir os acordes da amizade rodopiando ao som dos passos da valsa.

16.11.04

teias que prendem os afectos


michael morgan, december moon
Atrevesso a cidade, rasgo a noite e permaneço na incerteza. Nesse curto espaço entre a esperança e a descrença o olhar vagueia, vazio de sentido, procurando um ponto de referência. Sem perceber quais as teias que prendem os afectos.

O céu deixa-se aninhar na sombra, apenas o recorte da lua se destaca. Cativa o olhar, como promessa de amanhecer feliz, cortado por gestos de ternura. Não sei se esse sol brilhará mas, um outro, em fogo, retomará o curso inicial. Não interrompido, apenas saciado no suave espaço entre o respirar apressado e a suspensão momentânea da vida.

E sem perceber quais as teias que prendem os afectos, deixo-me aninhar no concâvo da pele, espraiando os sentidos, acolhendo essa onda de desejo que as tuas mãos despertam no meu corpo.

15.11.04

viagem


(...) nesses cadernos fui anotando, com minúcia, o dia a dia de cada viagem. Neles escrevi os primeiros poemas, desenhei mapas, paisagens e rostos. Fiz listas de lugares a visitar ou a evitar. Colei retratos de gente que se ia cruzando comigo, bilhetes postais, etiquetas, bilhetes de comboio e de avião...
(Al Berto)
Há tanto para escrever ainda! E se partires, não te esqueças de trazer contigo, ao regressar, essa vontade cristalina de desenhar sentires, colorir olhares, fazer esvoaçar os afectos no vento cálido que se agarra a quanto escreves...
Porque o porto de partida é, também, o porto que te acolhe no regresso.
Que seja breve e sereno.

14.11.04

com o tempo...


Com o tempo o prado seco reverdece,
Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso,
Com o tempo pára o rio caudoloso,
Com o tempo o campo pobre se enriquece,

Com o tempo um louro morre, outro floresce,
Com o tempo um é sereno, outro invernoso,
Com o tempo foge o mal duro e penoso,
Com o tempo torna o bem já quando esquece,

Com o tempo faz mudança a sorte avara,
Com o tempo se aniquila um grande estado,
Com o tempo torna a ser mais eminente.

Com o tempo tudo anda, e tudo pára,
Mas só aquele tempo que é passado
Com o tempo se não faz tempo presente.

(Luís Vaz de Camões)


A avó conhecia todas as plantas aromáticas. Apanhava raminhos apertados em fios de guita e a mãe colocava-os a secar, à sombra que era a forma certa de não perderem os feitiços. Tantos chás para tantas maleitas!
Mas havia um que eu gostava mais que todos. O delicioso, perfumado, chá de poejos. Fazia-me imaginar histórias de mouras encantadas. O aroma aconchegado ao sonho, quase voava, em personagem delineada por Xerazade.

Passeei pelo campo onde outrora corria, solta no vento. Não vi encantos, não senti o perfume da infância. Por entre as amendoeiras, vislumbrei sombras e acreditei que era a avó, com o regaço cheio de esperanças.
Abri os olhos, continuei a caminhar na estrada que se abria à minha frente.

11.11.04

pincéis, tintas de outros tempos


(Frederick Leighton )

Os meus passos pisam o silêncio da grande sala dourada. Levanto sons de outros tempos, brilhos antigos reavivados em reflexos de espelhos.
Sento-me à beira das vozes, audíveis apenas no desenho do tecto e sinto sombras de mãos tocando cores que se movimentam em pincéis.
Como Pandora, abro a caixa. E as cores saltam, disputando-se tonalidades, reclamando olhares que se adivinham em sentires de figuras mitológicas. Em excessos de paixão a mão de Vénus ilumina sabiamente amores, espalhados em esplendor de tintas, acolhidos em recantos de luxúria de belos leitos dourados.
E de novo as vozes se movimentam lançando pinceladas de flor de anil em realce de verde montanha. Alisando o desenho, os ocres, o almagre, o vermilhão e a sombra de colónia, desafiam o verdete, as folhas de prata e de oiro verde. E as mãos enchem-se de ternura, agarram o maquim sorrindo ao amarelo cor de limão e acariciando a cor de oiro. Com ele, o mestre ilumina o sentir de afectos, transbordados no debuxo dos painéis.
Em sobressalto, fecho a caixa. O som das vozes aquieta-se. Mas sei, que noutro tempo, o que restou dentro dela permitirá reavivar o silêncio que os meus passos levantaram.

10.11.04

menino lindo que me espreita



Hoje não escrevo. Nada me ocorre e tanta coisa vive intensa à minha volta. Assim são as palavras. Escondem-se.
Fazem-me falta. Procuro-as nesse mar que me aquieta, me devolve o senso. E o meu olhar acolhe-se em horizonte que me espera abrindo os braços num sorriso de bem querer.
Retomo o dia, sentindo a voz, o calor de uma saudade que se combinam no meu desejo de colorir a alma. E os tons harmonizam-se nas teclas. Que dedilho em bailado de sons, musicando blues, ritmando sensualidades de jazz, saltitando personagens de banda desenhada.
E o desenho das cores forma-se na carícia dos dedos, chamando as palavras, descobertas, curiosas, saindo do teclado, em fascínio de olhar que me espreita.
Com a inocência de criança que desperta.

9.11.04

dormência


(pajeczyna 07, teia )

Posso cruzar aquela porta. E é a possibilidade de recusa que me faz olhá-la intensamente. É giratória, a porta. Lá dentro espera-me um calor convidativo. Apenas convidativo. Mas dormente.
Sentada no banco de pedra, o ar crescendo em vento fresco assoma em arrepio. E o impulso para a porta é o que o ar me impele.
Mas aqui, sinto. Lá dentro tudo se dilui em quentura de aconchego, de dormência. E os sentidos enrolam o sentir, deixando a alma adormecida.
Fico, não a cruzo.

8.11.04

serenidade(s)



A tua serenidade. Caminho junto, sem lhe tocar, não vá tomar-se de medo e fugir. E não quero que fuja. Quero que olhe e encontre. A paz.

A minha serenidade. Toco-lhe e por vezes os percursos nem se cruzam, mas não foge, brinca comigo. Salta-me à frente, travessa, rindo-se. E então sou eu que a persigo, e se a alcanço, nem lhe ligo, solto-a livre, ao vento. Escondo-me dela na brisa do pensamento. Neste eterno jogo vamos caminhando.

A noite cai cedo, nestas tardes de Outono. Hoje, apanhou-me em clareira de areia, junto ao mar. Caminho repisado por mim e por ela, essa serenidade que se me acomoda, sem inquirir dos sons e das cores da maresia, sem sentir o restolhar da floresta. Desci a vereda e sentei-me na beirinha das ondas. Com a ponta dos dedos desenhei nas núvens sonhos de infância, tentei colori-los mas esqueci-lhes a cor de tanto sonhar. Adormeci olhando-os e ao fechar as pálpebras, prendi-a no olhar. A serenidade.
Mas já não sei qual é. Se a minha, se a tua.

6.11.04

folhas de outono


As vivas folhas do Outono. É assim que as vejo. Cada uma como um ser que se passeia em floresta de sons e cores. Desmaiadas de tons fulvos, cercam os troncos, espalham perfumes em chão de terra revolvida, sedenta de gotas de chuva.
E o meu olhar vagueia, colhendo sombras, descobrindo esconderijos onde se escondem sentires, disfarçados em folhas que a aragem leva. E voam, fogem, negando o roçar do sol, o calor do afecto de quem passa.

Tantas vezes repetido este caminho. Nunca igual. Hoje coloco a mão, tacteio o vento, aspiro o som que me chega de mansinho, no silêncio do tempo. E avanço, crestando a alma, sem perceber que os silêncios a despertam. Mas fecho os olhos. E abraço o vazio, enchendo o meu ser de sorrisos, soltos em solidão desalinhada.

5.11.04

hoje serei musa


Hoje não serei borboleta-flor. Despirei as asas, desfolharei as pétalas.
Hoje não serei menina-mulher. Despirei a inocência, deixarei cair o riso.
Hoje, serei apenas musa, a tua musa.

Virei pé ante pé, vestida de paixão, pintarei de rubro o meu desejo deixando-o deslizar sobre o meu corpo. Tomarei as tuas mãos, em gestos de carícia e as guiarei em labareda enlouquecida, sobre os meus seios. Os meus lábios tocarão o azeviche prateado que te emoldura o rosto, procurando o sonho que nos une.
Aos teus olhos cansados, emprestarei o brilho que me surge no olhar.e em sentires apaixonados de quem se perde na ausência, encontrarei a ponte que une ilhas, as duas ilhas que nós somos. Em palavras tatuadas no teu corpo, desenharei na tua boca o sabor da manhã apenas desperta. E na noite adormecida, despedir-me-ei, deixando-te em sonho de cristal.
Ao acordar, retomarás o horizonte, alisando as cores, desdobrando os traços que fugiram do teu dia.
E as palavras, as que construo para ti, serão os passos que perdeste no caminho.

4.11.04

equívoco


(Eric J. Logan, The Beginning )


Um dia. Mais um dia. E a vida que se escoa sem roçar sequer a alma. Vai andando, corre célere, evola-se, nem damos por ela. Não a sentimos. Talvez por se esconder nas sombras.
É preciso colori-la. A vida, porque a alma nada a toca, permanece fechada dentro de nós. Guardada, embrulhada, por decifrar.
E os sons, as palavras, aquelas que escrevemos com sentimento e as outras, as que escrevemos com o olhar, com o sentir, com o tacto, voam longe, procurando não sei que universo de sentidos, sem história, por modelar. Esperando tatuagem de impressões. As que a alma não revela. As que a vida não comporta.
Tudo é equívoco.

3.11.04

Recomeço ou novo começo


(Richard Esposito, The sky )

Se eu seguisse o voo dos pássaros. Mas não sigo. Arrebato apenas o movimento.
Tento o equilíbrio entre passado e presente tocando aquele ponto de vertigem. Mergulho nele como se agarrasse a tábua na solidão do mar em angústia de naufrágio.
Perco-me no ímpeto das vagas, diluindo-me, bebendo em golfadas o sal da maresia.
Solto os afectos, deixo-os flutuar à minha volta. Retomo-os depois, em pequenas carícias, imprimindo-lhes coloridos de vozes, de sons, de palavras faladas em sensações de descoberta.
Assim desnuda de aparências, aporto à minha ilha.

2.11.04

passos


Por um caminho semelhante caminharão outros passos.
Nas mãos ,as flores, no olhar o vazio da ausência. E os gestos repetir-se-ão.

Entre os mármores, procuro as pedras lisas, aquelas que escolhi para repousar as rosas, de um vermelho muito vivo. Em contraste com o silêncio em volta.
Serenamente, afasto a poeira que o vento levantou. Não olho. Apenas as coloco, em posição assimétrica.
Um arrepio apressa-me o regresso. Penso, lá fora, brilha o sol, mesmo que a névoa não se dissipe.
Um outro pensamento, súbito, rasga-se, nítido, em mim.

Por um caminho semelhante não ouvirei já o som dos meus passos.

1.11.04

mestre Samuel


...e a cumplicidade do mar sempre presente nas nossas brincadeiras infantis. Mesmo defronte da casa, a "baía", recanto da praia entre rochedos, era o ponto de partida para tantas viagens imaginadas nos barquinhos coloridos que lançávamos à babugem das ondas.
Mas havia o Argus. Branco, enlaçado por vivo pintado a negro, nome orgulhosamente desenhado, saltava na cresta das vagas pela mão segura de Mestre Samuel, rosto tisnado pelo sol tantas as horas embaladas no mar e corpo curvado no jeito de lançar as "mourejonas" e de "safar" as linhas e os anzóis dos "açafates".
Quando o mar se revolvia de fúria e o barco descansava em terra, Mestre Samuel, animado pelo conforto de uns dedinhos de vinho, encostava a sua voz ao postigo da porta e entoava risos e quadras que nos deliciavam. A companheira, "olhos de gata" como ele dizia, acenava a cabeça em reprovação muda que mais não era que a ternura envergonhada. A secagem das amêndoas e dos figos era o seu trabalho, armava o "almanxar" em círculo, onde estendia as esteiras recolhidas à tardinha negando aos frutos a carícia do "sereno".
Mestre Samuel corria pela praia atrás de nós para nos lançar na água e nós, em susto e gargalhada, lá mergulhávamos. O mar, que tanto amava, ajeitava o baptismo da sua mão segura envolvendo o nosso corpo em golfadas saborosas de sal e espuma. Assim aprendemos a nadar e a amar esse espaço imenso mas cuidando, quando de súbito se levantava a brisa de "mar de fora" Tranquilo, era quando apresentava mais perigos, como no poema de Vinicius, e era tempo de fugir. E ensinou-nos a magia dos números nos dias de "levante", eram sete as ondas e só depois o mar permitiria o nosso abraço, devolvendo-nos à areia em jogos harmonizados.
Em transparências cristalinas, ficaram as memórias de caprichos infantis nas conchas que Mestre Samuel recolhia e me trazia embrulhadas num sorriso.
Olhando na distância, imagino que o barquinho ao longe, embalado pelo mar, é Mestre Samuel sonhando antes de nos vir apanhar no areal.
* texto escrito para o Professorices e agora recuperado pela autora